Não toque no "ungido do Senhor!" Sério? - Por Augustus Nicodemus Lopes
Não toque no "ungido do Senhor!" Sério?
Há várias passagens na Bíblia onde aparecem expressões iguais ou semelhantes a estas do título desta postagem:
A ninguém permitiu que os oprimisse; antes, por amor deles, repreendeu a
reis, dizendo: Não toqueis nos meus ungidos, nem maltrateis os meus
profetas (1Cr 16:21-22; cf. Sl 105:15).
Todavia, a passagem
mais conhecida é aquela em que Davi, sendo pressionado pelos seus homens
para aproveitar a oportunidade de matar Saul na caverna, respondeu: "O
Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, isto é, que eu
estenda a mão contra ele [Saul], pois é o ungido do Senhor" (1Sm 24:6).
Noutra ocasião, Davi impediu com o mesmo argumento que Abisai, seu
homem de confiança, matasse Saul, que dormia tranquilamente ao relento:
"Não o mates, pois quem haverá que estenda a mão contra o ungido do
Senhor e fique inocente?" (1Sm 26:9). Davi de tal forma respeitava Saul,
como ungido do Senhor, que não perdoou o homem que o matou: “Como não
temeste estender a mão para matares o ungido do Senhor?” (2Sm 1:14).
Esta relutância de Davi em matar Saul por ser ele o ungido do Senhor
tem sido interpretado por muitos evangélicos como um princípio bíblico
referente aos pastores e líderes a ser observado em nossos dias, nas
igrejas cristãs. Para eles, uma vez que os pastores, bispos e apóstolos
são os ungidos do Senhor, não se pode levantar a mão contra eles, isto
é, não se pode acusa-los, contraditá-los, questioná-los, criticá-los e
muito menos mover-se qualquer ação contrária a eles. A unção do Senhor
funcionaria como uma espécie de proteção e imunidade dada por Deus aos
seus ungidos. Ir contra eles seria ir contra o próprio Deus.
Mas, será que é isto mesmo que a Bíblia ensina?
A expressão “ungido do Senhor” usada na Bíblia em referência aos reis
de Israel se deve ao fato de que os mesmos eram oficialmente escolhidos e
designados por Deus para ocupar o cargo mediante a unção feita por um
juiz ou profeta. Na ocasião, era derramado óleo sobre sua cabeça para
separá-lo para o cargo. Foi o que Samuel fez com Saul (1Sam 10:1) e
depois com Davi (1Sam 16:13).
A razão pela qual Davi não queria
matar Saul era porque reconhecia que ele, mesmo de forma indigna,
ocupava um cargo designado por Deus. Davi não queria ser culpado de
matar aquele que havia recebido a unção real.
Mas, o que não se
pode ignorar é que este respeito pela vida do rei não impediu Davi de
confrontar Saul e acusá-lo de injustiça e perversidade em persegui-lo
sem causa (1Sam 24:15). Davi não iria matá-lo, mas invocou a Deus como
juiz contra Saul, diante de todo o exército de Israel, e pediu
abertamente a Deus que castigasse Saul, vingando a ele, Davi (1Sam
24:12). Davi também dizia a seus aliados que a hora de Saul estava por
chegar, quando o próprio Deus haveria de matá-lo por seus pecados (1Sam
26:9-10).
O Salmo 18 é atribuído a Davi, que o teria composto
“no dia em que o Senhor o livrou de todos os seus inimigos e das mãos de
Saul”. Não podemos ter plena certeza da veracidade deste cabeçalho, mas
existe a grande possibilidade de que reflita o exato momento histórico
em que foi composto. Sendo assim, o que vemos é Davi compondo um salmo
de gratidão a Deus por tê-lo livrado do “homem violento” (Sl 18:48), por
ter tomado vingança dos que o perseguiam (Sl 18:47).
Em
resumo, Davi não queria ser aquele que haveria de matar o ímpio rei Saul
pelo fato do mesmo ter sido ungido com óleo pelo profeta Samuel para
ser rei de Israel. Isto, todavia, não impediu Davi de enfrentá-lo,
confrontá-lo, invocar o juízo e a vingança de Deus contra ele, e
entregá-lo nas mãos do Senhor para que ao seu tempo o castigasse
devidamente por seus pecados.
O que não entendo é como, então,
alguém pode tomar a história de Davi se recusando a matar Saul, por ser o
ungido do Senhor, como base para este estranho conceito de que não se
pode questionar, confrontar, contraditar, discordar e mesmo enfrentar
com firmeza pessoas que ocupam posição de autoridade nas igrejas quando
os mesmos se tornam repreensíveis na doutrina e na prática.
Não
há dúvida que nossos líderes espirituais merecem todo nosso respeito e
confiança, e que devemos acatar a autoridade deles – enquanto, é claro,
eles estiverem submissos à Palavra de Deus, pregando a verdade e andando
de maneira digna, honesta e verdadeira. Quando se tornam repreensíveis,
devem ser corrigidos e admoestados. Paulo orienta Timóteo da seguinte
maneira, no caso de presbíteros (bispos/pastores) que errarem:
> "Não aceites denúncia contra presbítero, senão exclusivamente sob o
depoimento de duas ou três testemunhas. Quanto aos que vivem no pecado,
repreende-os na presença de todos, para que também os demais temam"
(1Tim 5:19-20).
Os “que vivem no pecado”, pelo contexto, é uma
referência aos presbíteros mencionados no versículo anterior. Os mesmos
devem ser repreendidos publicamente.
Mas, o que impressiona
mesmo é a seguinte constatação. Nunca os apóstolos de Jesus Cristo
apelaram para a “imunidade da unção” quando foram acusados, perseguidos e
vilipendiados pelos próprios crentes. O melhor exemplo é o do próprio
apóstolo Paulo, ungido por Deus para ser apóstolo dos gentios. Quantos
sofrimentos ele não passou às mãos dos crentes da igreja de Corinto,
seus próprios filhos na fé! Reproduzo apenas uma passagem de sua
primeira carta a eles, onde ele revela toda a ironia, veneno, maldade e
sarcasmo com que os coríntios o tratavam:
>"Já estais
fartos, já estais ricos; chegastes a reinar sem nós; sim, tomara
reinásseis para que também nós viéssemos a reinar convosco. Porque a mim
me parece que Deus nos pôs a nós, os apóstolos, em último lugar, como
se fôssemos condenados à morte; porque nos tornamos espetáculo ao mundo,
tanto a anjos, como a homens. Nós somos loucos por causa de Cristo, e
vós, sábios em Cristo; nós, fracos, e vós, fortes; vós, nobres, e nós,
desprezíveis.
Até à presente hora, sofremos fome, e sede, e nudez; e
somos esbofeteados, e não temos morada certa, e nos afadigamos,
trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando somos injuriados,
bendizemos; quando perseguidos, suportamos; quando caluniados,
procuramos conciliação; até agora, temos chegado a ser considerados lixo
do mundo, escória de todos. Não vos escrevo estas coisas para vos
envergonhar; pelo contrário, para vos admoestar como a filhos meus
amados. Porque, ainda que tivésseis milhares de preceptores em Cristo,
não teríeis, contudo, muitos pais; pois eu, pelo evangelho, vos gerei em
Cristo Jesus. Admoesto-vos, portanto, a que sejais meus imitadores"
(1Cor 4:8-17).
Por que é que eu não encontro nesta queixa de
Paulo a repreensão, “como vocês ousam se levantar contra o ungido do
Senhor?” Homens de Deus, os verdadeiros ungidos por Ele para o trabalho
pastoral, não respondem às discordâncias, críticas e questionamentos
calando a boca das ovelhas com “não me toque que sou ungido do Senhor,”
mas com trabalho, argumentos, verdade e sinceridade.
“Não toque no ungido do Senhor” é apelação de quem não tem nem argumento e nem exemplo para dar como resposta.
Por Augustus Nicodemus Lopes
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